sábado, 25 de fevereiro de 2012

AROLDO DA COSTA TOURINHO - Biografia

Haroldo Costa Tourinho Filho

"Senti e experimentei não ser de admirar que o pão,  tão
saboroso ao paladar saudável, seja enjoativo ao paladar
enfermo; e que a luz, amável aos olhos límpidos, seja odiosa
aos olhos dos doentes."
Santo Agostinho, em Confissões, Liv. IV, Cap. 16

FORMAÇÃO

Fernando da Costa Tourinho e Luiza Francisca Freire Tourinho (Lulu) geraram seis filhos: Armando, Aroldo, Ayrton, Luizernando, Herdival e Fernando, pela ordem. AROLDO DA COSTA TOURINHO nasceu em Salvador, Bahia, aos 20 de fevereiro de 1912. Dos dois aos onze anos viveu em Xique-Xique e Viçosa (hoje Nova Viçosa), duas das cidades do interior do estado onde seu pai exerceu a magistratura.
   A exemplo do primogênito, Armando, findo o primário encaminharam-no os pais à capital, onde continuaria os estudos. Aroldo logrou ser admitido no Ginásio da Bahia (atualmente Colégio Central), educandário público de grande prestígio à época. Foi morar com os avós paternos, Getulino e Virgínia, pais de catorze filhos. A numerosa família o acolheu carinhosamente e mitigou suas saudades de casa. Primos e primas, dentre estas sua futura esposa, não lhe faltaram como companheiros nos folguedos da idade.
   Era Aroldo menino esperto, logo aprendeu a se deslocar em bondes pela cidade grande (Salvador contava então com cerca de 300.000 habitantes - IBGE), porém, algo distraído. Mal chegara à capital quis conhecer o afamado magazine/alfaiataria do avô, localizado no Comércio, Cidade Baixa. Já ouvira falar da elegância britânica do tio Orlando, auxiliar do pai na administração do estabelecimento. Assim, ao adentrá-lo, deparou-se o rapazola interiorano com um manequim formidável, elegantérrimo, e não teve dúvida, estendeu-lhe a mão e pediu: a benção, meu tio Orlando...
   Concluído o ginásio (cinco anos), no qual teve como colega de turma o destemido e futuro militante de esquerda Carlos Marighella*, preparou-se Aroldo para o vestibular da Faculdade de Medicina, que exigia, à época,  a aprovação em quatro disciplinas: biologia, física, química orgânica e química inorgânica. Havia provas orais e escritas. Para estas, sorteava-se um ponto e o candidato sobre ele discorria. As orais eram temidas, devido o rigor das bancas examinadoras. Aroldo passou raspando em física, foi razoavelmente bem nas químicas e brilhou em biologia, oral e escrita. Sabia tudo.
   O jovem Aroldo nutria uma paixão nada secreta, ao contrário,  correspondida, pela prima Lourdes, filha dos tios Edith e Rubens, irmão de seu pai. Aos 17 anos, ela 14, oficializaram o chamego. Com absoluta certeza foi a tia e futura sogra, Edith, professora de piano e francês, além de exercer encargos de parteira, quem nele despertou a vocação para a medicina. Dos seus cinco irmãos, três se formariam em direito, seguindo o pai. Ficava Aroldo ali, na casa da tia, a folhear compêndios de obstetrícia e a admirá-la ao vê-la sair em socorro de alguma parturiente, vestida de branco, empunhando sua maleta.
  Na faculdade, vencido o vestibular,  a partir do segundo ano passou  Aroldo à condição de interno, quando começou a assistir a partos e, logo depois, a fazê-los - indigentes não faltavam... Livros, a maioria em francês, custavam caro, a mesada era curta e, mesmo com a baixa remuneração de juiz de direito à época, o pai Fernando  mantinha quatro filhos estudando na capital, pois a essa altura Ayrton e Luizernando lá se encontravam. Para driblar a situação a namorada Lourdes, dispondo de maior tempo livre, copiava-lhe os pontos em primorosos cadernos na biblioteca da faculdade. Também levava-lhe lanches, pois, como sói acontecer, a comida do hospital era intragável, um badofe, no dizer dos estudantes.
   Em 1932 eclode a Revolução Constitucionalista em São Paulo. A favor do movimento uniram-se a faculdade de direito e a de medicina, quando, então, Armando e Aroldo foram presos durante uma passeata e passaram algumas horas em roupas de baixo numa das celas da repressão chancelada por Juracy Magalhães, então governador da Bahia.  A esse tempo os avós Getulino e Virgínia já haviam se retirado para sua propriedade rural em Feira de Santana, BA, a 100 km da capital, derradeiro bem imóvel que lhes restara após a crise financeira familiar que vinha se arrastando desde a Primeira Guerra Mundial. Getulino não abrira falência, por ele considerada uma desonra... Vendeu, um a um, todos os seus bens em Salvador: sobrado de três andares nos Barris, chácara no Rio Vermelho, casas, terrenos, a loja e a alfaiataria (fora fornecedor exclusivo do fardamento das Forças Públicas dos estados da Bahia, Pernambuco e Sergipe, bem como das vestes do clero baiano) para honrar compromissos.Contribuiu também,significativamente, para sua bancarrota, a perseguição que lhe movia o então todo poderoso governador (três mandatos) José Joaquim Seabra. Homem de oposição, fiel a seus princípios morais, Getulino não lhe dava trégua.

   Aroldo da Costa Tourinho colou grau pela Faculdade de Medicina da Bahia em 16 de dezembro de 1937. Em seguida, no dia 23, casou-se com a amada prima Lourdes - professora  diplomada pela Escola Normal da Bahia - na Catedral Metropolitana de Salvador, onde, anos mais tarde, viriam a comemorar suas Bodas de Prata. O jovem casal foi para Itambé, BA, onde o pai dele, Fernando, exercia a judicatura. Lá, foram informados de que em Encruzilhada, cidade próxima, não havia médico. Estabeleceram-se então nesta cidade, em ampla casa com duas salas de frente para a rua. O irmão Armando, formado em direito, os acompanhara e lá passou a exercer a advocacia até sua aprovação em concurso público para a Promotoria do Estado.  
   Numa das salas da casa recém-alugada Aroldo montou seu consultório e, na outra, algum tempo depois Lourdes abriu sua sala de aula, onde viria  desasnar boa parte da meninada da cidade. Detalhe: a escola era gratuita. Ela precisava fazer alguma coisa - dizia - para vencer as modorrentas tardes do sertão. Então, as aulas e os romances, além dos livros de medicina do marido, lidos às pilhas, abrandavam-lhe os dias.  

* Carlos Marighella nasceu em Salvador, Bahia, em 5 de dezembro de 1911. Em 1929 começa a cursar engenharia civil na antiga Escola Politécnica da Bahia, depois de haver estudado no Ginásio da Bahia, hoje Colégio Central. Numa e noutra escola destaca-se, como aluno, pela alegria e criatividade. São famosas suas diversas provas em versos. No dia 4 de novembro de 1969 Carlos Marighella caiu numa emboscada armada pelo DOI-Codi, tendo a frente o delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Fonte: www.carlos.marighella.nom.br/vida.
Aos meus extremosos Pais.
A vós, somente a vós, eu devo esta glória. Aroldo, 16.12.1937


CARREIRA MÉDICA E CONSTITUIÇÃO FAMILIAR


Em 10 de novembro de 1938 veio à luz o primeiro filho do casal, Raymundo. Nasceu com dificuldade para respirar. O pai e parteiro, vendo que o bebê arroxeava, não titubeou: sugou-lhe os mucos nasal e bucal. Chupava-os e cuspia. Muitos anos depois, na Santa Casa de Misericórdia de Montes Claros, teve a oportunidade de reprisar o procedimento. Acabara de entrar na sala de partos quando viu e apanhou um bebê depositado num balde. "Irmã Malvina, este menino está vivo!" A pobre da irmã, também parteira, dera a criança como morta. Lá se foi dr. Aroldo e repetiu o que fizera com o seu primogênito. O menino do balde ganhou o sugestivo nome de Balduíno...   Em 21 de junho de 1940 nasceu Layce e o planejado pelo casal fora que a descendência parasse por ali.
   Aroldo e Lourdes permaneceram por seis anos em Encruzilhada, exceto por um período de um ano em que estiveram em Salvador (1943-44), convocado que fora ele a prestar serviços médicos ao exército durante a Segunda Grande Guerra. Deu baixa como tenente. Ainda em 1944, após convite de seu tio Mário, também médico, Aroldo vendeu o gado que lhe fora presenteado por clientes (47 cabeças), juntou pertences e economias e  mudou-se com a família para Montes Claros, MG. Dona Fininha Ribeiro, de há muito viúva, mãe de Darcy e Mário, foi a primeira pessoa com quem a família relacionou-se na cidade, vizinha que era dos tios Mário e Anésia. Não havia casa para alugar ou vender em Montes Claros. Após alguns dias hospedados com os tios, Aroldo, Lourdes e as duas crianças foram para o hotel São José, ali perto. O tio Mário residia em casa com enorme quintal na rua Dr. Santos, esquina com D. João Pimenta. Mestra Fininha lecionava no Grupo Escolar Gonçalves Chaves e morava em frente, na esquina oposta, hoje um estacionamento.
   Seis meses de hotel cansam. E era preciso ganhar dinheiro. No distrito de Patis não havia médico e para lá Aroldo conduziu a família. Após seis meses mudou-se para Bela Vista (hoje Mirabela). Devido à localização, esse distrito trazia-lhe ao consultório clientes de Brasília (hoje Brasília de Minas), São Francisco e outras localidades próximas. Também ali Aroldo permaneceu por seis meses, quando lhe chegou notícia de que estava disponível uma casa em Montes Claros. Assim, ao se estabelecer nesta cidade sua clientela estava praticamente formada. Era gente de Patis, Bela Vista, Brasília, São Francisco, Januária... a buscar seus serviços médicos. Ele abriu consultório, onde também passou a residir, em casa situada à rua Presidente Vargas, ao lado do antigo Clube Montes Claros (depois Conservatório). O imóvel pertencia ao Sr. Edmundo Dias (Mundinho), que habitava com a família a casa vizinha. Dali, alguns anos depois, Aroldo foi para a sua próxima mas não última residência, casa hoje demolida localizada na rua Dr. Santos.
   Não foi nada fácil o dr. Aroldo entrar para o corpo clínico da Santa Casa. O hospital desconhecia a figura do ginecologista-obstetra. Os partos eram feitos então pela Irmã Beata, porém, um belo dia, a coisa complicou: a parturiente, esposa de um proeminente fazendeiro corria risco de vida. Consultado sobre como proceder, o cirurgião Fábio Ribeiro recomendou Aroldo, médico moderno há pouco chegado da Bahia, com conhecimentos atualizados, como único capaz de levar a bom termo aquele parto. Permitido seu acesso ao hospital pelo bispo diocesano, pois a Santa Casa pertence à Mitra, dr. Aroldo assumiu o caso, gestante e nascituro foram por ele salvos e, a partir daí, pelo mérito, ele conquistou seu lugar naquele nosocômio, cujo corpo clínico viria a chefiar por vários anos, além de exercer as funções de provedor. 
   Em 1950 aluga casa à rua São Francisco, esquina com D. Pedro II, defronte ao bar Cambuy, hoje hotel Monte Rey. Neste ano nasce seu terceiro filho, Haroldo. Para lhe fazer companhia, dezoito meses depois vem à luz Roberto. O plano original de dois descendentes fora ultrapassado... E, como se quatro filhos não bastassem, oito anos depois viria o quinto e último, Henrique, raspa do tacho paparicado por toda a família.   
   Aroldo Tourinho foi médico zeloso, extremamente profissional e ético no exercício da profissão -verdadeiro discípulo de Hipócrates.   Somente realizava operações cesarianas quando clinicamente indicadas. Era contrário ao aborto, a não ser em casos previstos pela legislação. Fazia, no entanto, a chamada ligadura de trompas (laqueadura tubária) -meio escondido das irmãs da Santa Casa - a pedido ou à revelia de clientes pobres. Na intimidade, dizia a respeito: "A pobre coitada vive na miséria, já teve sete filhos, a cada ano morre um, qual o sentido de uma nova gravidez?" Não sabemos sua opinião sobre a eutanásia, assunto pouco discutido em sua época, mas, por analogia, supomos que, tal como o aborto, fosse favorável à medida desde que amparada em lei.

Corpo Clínico da Santa Casa de Montes Claros em 1950. Da esquerda para a direita: Aroldo Tourinho, Jason Teixeira, Luiz Pires, Geraldo Machado, Mário Ribeiro, Konstantin Christoff, Alcides Loyola e Áflio Mendes de Aguiar.



VIDA PRIVADA
 
Aroldo não bebia. Com alguns intervalos fumou durante toda a sua vida desde a juventude: Yolanda, Hollywood sem filtro, com filtro, Carlton e Free, sucessivamente. Não foi desportista, embora nadasse bem e apreciasse o remo. Futebol, somente em Copas do Mundo. Talvez influenciado pelo tio Mário, que mantinha ao lado da própria uma outra casa destinada a receber amigos para o carteado, Aroldo desenvolveu crescente atração pelo jogo. Acorria quando possível ao Clube Montes Claros para se entreter com os companheiros de pôquer: Jason Teixeira, Moreira César, Sinval Nogueira, os Mineiros de Souza, Maurício e Mário, Major (Alcebino Santos), Edgar Pereira e outros. Quando da inauguração do Automóvel Clube de Montes Claros ele já se livrara da compulsão pelas cartas, passando então a se divertir, esporadicamente, em casa de seus amigos Major, Maurício-Milene e João Galo.
   Aroldo Tourinho lera bastante na juventude e primeira fase da vida adulta, principalmente clássicos franceses e russos. Depois, devido à falta de tempo concentrou sua atenção em jornais, revistas, informativos e artigos médicos. Acompanhava lançamentos de alguns dos autores nacionais, notadamente Jorge Amado, e foi leitor compulsivo de livrinhos de bolso, gênero cowboy, vício disseminado entre ele e seus irmãos pelo caçula Pitango (Fernando). Adorava cinema, desde os velhos tempos de Tom Mix no Cine e Teatro Polytheama, em Salvador -  um pulgueiro, dizia ele sobre a sala. Filmes de guerra e espionagem (007) também eram o seu fraco. Quando coincidia estar em casa assistia aos noticiários de TV. Odiava os filmes, dublados. "Esta não é a voz de Gary Cooper!" Assistiu a somente uma novela, O bem amado. "Esse Paulo Gracindo é porreta!" Das antigas chanchadas da Atlântida admirava Oscarito e Grande Otelo. E as vedetes, obviamente. Quanto à música, ouvia principalmente ópera - sua favorita era Aída, de Verdi.  Mas vivia cantarolando Coração americano, de Milton Nascimento, e algumas canções de Chico Buarque. Também curtia Yesterday e outras canções dos Beatles e Beto Guedes, sua cria (passava as férias escolares de julho em sua casa), a quem chamava de Salário Mínimo, devido a frágil estrutura corporal para a idade. Lourdes ia de clássicos (Bach, principalmente), fados, e durante o Carnaval seu rádio de cabeceira ficava sintonizado em marchinhas. De acordo com a idade os filhos foram introduzindo novos gêneros musicais em casa: jazz, soul, blues, mpb, até a invasão do rock. Aroldo e Lourdes a tudo suportavam... Era ele homem de fino humor, vivia a recontar refinadas piadinhas memorizadas em velórios - outro de seus fracos. E irônico, quando vez por outra cantava o sambinha: "Na minha casa todo mundo é bamba, todo mundo bebe, todo mundo samba..."
   Era também um liberal, no mais amplo sentido do termo. Com raríssimas exceções aos filhos era permitida a leitura do que bem entendessem. E dinheiro para livros não faltava. Com os filhos conversava sobre tudo: sexo (explicava as doenças venéreas); drogas ("Você já mexeu com droga?" - "Tomei pervitin, pai." -  "Pra quê?"  -  "Pra aguentar o Carnaval..."; política ("Sigam a ideologia que quiserem, só não quero nazi-fascistas em casa."). Aos quinze anos os filhos homens recebiam dele a chave de casa. Podiam então chegar a qualquer hora nos fins de semana, bem como fumar e beber se lhes aprouvesse, desde que moderadamente, "nada de excessos". Era-lhes também permitido dirigir o seu carro, pois naquela época não habilitados andavam à solta ao volante.
   Aroldo tinha pelos irmãos e pela mãe, Luíza, carinhosamente chamada pelos netos de Lulu, verdadeira adoração. Após a introdução da rota aérea Montes Claros-Salvador pela Panair do Brasil* nos antigos, porém, seguríssimos DC-3,  todos os anos ele e a família os visitavam. Depois, com a Rio-Bahia, essas viagens passaram a ser feitas em automóvel. Quinzenalmente se correspondiam, ele e a mãe, e as missivas dela, em caligrafia impecável a bico de pena, sempre terminavam em trovinhas como esta:

                                Tenho seis filhos queridos
                               Que me enchem o coração
                              Todos são meus amigos
                             Minhas flores em botão...

   Aroldo e Lourdes gostavam de tomar pré-adolescentes para criar. Eram tratados como filhos. A primeira foi Esther, ainda nos anos de 1950, que viria a se casar com um dono de caminhão, hoje supermercadista em Vitória da Conquista, BA. 
Sucedeu-a Maria Aparecida Silva, menina do distrito dos Veados, hoje Nova Esperança, cujo sonho era estudar em Montes Claros. Também casada, com o funcionário público municipal Valdir José Ferreira da Silva , com quem teve seis filhos, sendo que um deles, Alexandre, oficial da Polícia Militar, é detentor de três diplomas pela Universidade Estadual de Montes Claros-Unimontes, onde se formou em matemática, biologia e filosofia.  Em seguida Lourdinha, filha da lavadeira da família, Edite Rodrigues (a quem Aroldo deu lote de terreno e construiu barracão no bairro Maracanã), casada e residente no Rio de Janeiro. A quarta cria, Cândido Rodrigues, irmão de Lourdinha, estava bem encaminhado, trabalhando no departamento de contabilidade da indústria de ótica e mecânica - Siom, preparando-se para o vestibular de Administração, quando teve a vida interrompida aos 19 anos pelo diabetes. Deixou pensão para a mãe e um pequeno apartamento que havia financiado no Rio quando de uma de suas visitas à irmã.
  
Praça dr. João Alves, 114

   Em abril/maio de 1957 a família de dr. Aroldo mudou-se finalmente para uma residência própria, construída em lote de terreno adquirido de seu amigo e vizinho Oswaldo Souto, que construíra havia pouco a sua. A inauguração da casa aconteceu por ocasião do centenário de Montes Claros, 03.07.1957, quando vários dos seus familiares vieram à cidade, provenientes de Belo Horizonte, para onde seus tios Mário e Anésia haviam se mudado com os filhos em 1955. Sua comadre Olívia (madrinha de seu filho Haroldo) e irmã da tia Anésia, casada com o dr. Waldir Bessone de Oliveira Andrade, também esteve  presente com o marido e filhos. No dia do centenário da cidade,  Aroldo recebeu uma boa notícia: havia ganho o prêmio anual da Companhia de Seguros Aliança da Bahia, uma bolada à época. Em se tratando de dinheiro, face a uma perda maior resignava-se, mas enervava-se com a falta de centavos num troco. Lourdes definia bem tal comportamento: "Aroldo é capaz de engolir uma baleia, mas se engasga com uma pititinga..."
   Em 1962 Aroldo adquire o seu primeiro automóvel. O fato merece registro pelo inusitado da operação. Numa manhã de um sábado  qualquer de março  surge, estacionado em frente a sua casa, um belo Simca Chambord, vermelho e branco. De quem seria aquele carro? perguntavam-se os filhos. Ninguém sabia. No domingo, lá estava o carro ao sol escaldante. Na segunda, por volta do almoço, um rapaz entrega-lhe as chaves do veículo, dizendo: Dona Fernanda mandou entregá-las ao senhor. "Dona Fernanda ficou louca? Eu não comprei nenhum carro!" Ligou para a dona da concessionária, Fernanda Ramos, sua cliente, comadre e amiga, e esta lhe disse: "Aroldo, está na hora de você ter um carro!" Ao que ele retrucou: "Mas nem dirigir eu sei!" Debalde, a vendedora era imbatível: "Amanhã mando-lhe um instrutor..." E foi assim que Milton Monção entrou para a história da família. De instrutor de direção passou a amigo e compadre, seguramente um dos grandes amigos de Aroldo Tourinho - e de seus filhos.
     
  *A Panair do Brasil teve como seu primeiro representante em Montes Claros o Sr. Nathércio França, tido por Lourdes o homem mais elegante da cidade. Também foi representante das afamadas Lojas Renner e um dos fundadores do Aero-Clube de Montes Claros.

POLÍTICA

   Aroldo Tourinho retornava em automóvel de estação de águas em Poços de Caldas, MG,  com  Lourdes e seu caçula Henrique, quando o motorista Jayro Vianey de Mattos, Gabi, chamou-lhe a atenção: "Doutor, o que é aquilo?" Eram tanques e tropas do Gal. Olímpio Mourão Filho em marcha rumo ao Rio de Janeiro. O tresloucado general antecipara-se aos planos dos líderes da  conspiração e dava início, por conta e risco, ao golpe militar de 1964. Era a manhã de 31 de março.
   Quando Aroldo chegou em Montes Claros o golpe já se consumara. Reuniu-se então o Partido Republicano, PR, ao qual era filiado, no consultório vizinho à sua casa e pertencente ao médico e líder político João Valle Maurício. Esta casa/consultório fora de propriedade de dr. João Alves,  médico extremamente caridoso, casado com dona Tiburtina, e ficaria na história do município como palco do tiroteio de 06 de fevereiro 1930, onde se envolveram a comitiva do então vice-presidente da República, Mello Vianna, e partidários do dr. João Alves.
   O PR local aderiu ao golpe de 1964, nominado revolução pelos vitoriosos, com exceção de dois de seus membros, Aroldo Tourinho e Mário Ribeiro. Este, por ser irmão de Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil do presidente deposto João Goulart, logo viria a ser preso em seu lar e sofrer outras iniquidades, como a cassação de seus direitos políticos por dez anos. Em razão do golpe Aroldo, praticamente neófito em articulações políticas, passa a se opor à ditadura militar que se instalava no país. Mas não sabia aonde ir, o que fazer.
   Genival Tourinho, seu primo, filho de seu tio Mário, chega a Montes Claros. Advogado, liderança experimentada na política da capital - estudantil e partidária - traz na pasta, além de um Smith & Wesson .32 para qualquer eventualidade,  estatuto e fichas para filiação ao novo partido político de oposição permitido pelos donos do poder, o MDB-Movimento Democrático Brasileiro. Nasce assim, em Montes Claros, na residência de Aroldo Tourinho, o movimento de reação à ditadura militar no norte de Minas. Os primeiros filiados eram na sua maioria jovens, sendo que alguns deles tiveram as potencialidades político-eleitorais despertadas por Genival Tourinho, mentor intelectual do grupo. Urgia ir à luta. E todos foram, ninguém se escondeu.
   Em 1966 Aroldo, disputando pelo MDB, foi eleito vereador à Câmara Municipal de Montes Claros. Foi o terceiro mais votado da cidade e o segundo do seu partido. Exerceu efetivamente a vereança através de Requerimentos* e Projetos de Lei, dentre os quais o da criação das Lavanderias Comunitárias, levado a cabo alguns anos depois pelo Sr. Luís Tadeu Leite, eleito prefeito pelo MDB em 1982. A menina dos seus olhos, no entanto, foi a Fundação Municipal de Amparo à Infância - FUMAI**, por ele criada, através de Lei Municipal, em 1967.  Em 1970, Aroldo Tourinho foi candidato a vice-prefeito na chapa encabeçada pelo jovem e aguerrido arquiteto João Carlos Sobreira e em 1976 disputa a prefeitura, quando da vigência das sub-legendas, juntamente com os Srs. Pedro Narciso e José da Conceição Santos. Não obteve vitória nos dois últimos pleitos. Era uma luta inglória enfrentar nas urnas o partido da ditadura.
   Contratado como professor pela então FUNM - Fundação Universidade Norte de Minas (atualmente Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes) em março de 1973, Aroldo Tourinho ocupa as cadeiras de ginecologia e obstetrícia da faculdade de medicina daquela instituição. Retorna aos livros e ao francês meio esquecido para preparar as suas aulas. Desliga-se da faculdade em janeiro de 1975, havendo cumprido a missão de dar suporte às suas primeiras turmas de formandos.
  
   Em 1º de fevereiro de 1982 Aroldo Tourinho submete-se à cirurgia para retirada da vesícula que o vinha incomodando havia alguns anos. Complicações no pós-operatório levaram o corpo clínico da Santa Casa de Montes Claros a encaminhá-lo a Belo Horizonte, onde internaram-no no CTI do hospital São Lucas, vindo ele aí falecer em 24 do mesmo mês.
   Esta foi, em linhas gerais, a trajetória terrena de Aroldo da Costa Tourinho (20.02.1912 - 24.02.1982), filho, marido e pai exemplar, médico, político e professor no qual se via, na atuação, a responsabilidade social.

NOTA: O casal Aroldo-Lourdes da Costa Tourinho (24.10.1915 - 12.09.1991) teve cinco filhos: Raymundo (casado com Terezinha Mendes Tourinho, filhos: Ivana, Cláudio, Érika e Flávia); Layce (casada com José Corrêa Machado, filhos: Andréa, Igor, Rogério, Adriana e Juliana); Haroldo (casado com Irene Maria Silva Tourinho, divorciados, filha: Marina); Roberto (solteiro, sem filhos, falecido em outubro de 1988) e Henrique (casado com Danusa Silva Porto, sem filhos).

* REQUERIMENTOS: ver no Índice deste blog, coluna à direita.
** FUMAI, idem.
*** Ver também HOSPITAL AROLDO TOURINHO
OBS: A biografia acima foi também publicada no blog do jornal Hoje em Dia, gerenciado pelo jornalista ADRIANO SOUTO >

MEU IRMÃO AROLDO - Fernando Tourinho Filho

Fernando da Costa Tourinho Filho
(Pitango)

De uma série de filhos do casal  Fernando da Costa Tourinho e Luiza Freire Tourinho, fui o sexto e último. Aroldo foi o segundo. Nasci em 1926, em Viçosa, e ele em 1912, em Salvador. Enquanto ele estudava em Salvador, morando com meus avós paternos, eu, criança, ficava ao lado de meus pais, indo de um lugar para outro, cumprindo ordens do Governador, responsável pela remoção dos Juízes. Àquela época não se falava em inamovibilidade dos Juízes.   
   Vim conhecer Aroldo em Nilo Peçanha, onde Papai era Juiz e ele estava passando as férias e prestes a se formar. Depois eu o ví por alguns dias, quando Papai estava em Salvador,  na casa dos pais de Lourdes, sua prima e namorada, na rua Castro Neves, 74, aguardando ordens para ir para Itambé. Em 1937 ele apareceu por lá, já casado com minha prima Lourdes. Papai o aconselhou a ir clinicar em Encruzilhada, pois correra a notícia de que lá não havia médico. E ali ele permaneceu por vários anos. A distância entre Itambé  e Encruzilhada era de 12 léguas (como se costumava falar). Lá estive em 1939, indo em lombo de burro, acompanhado por um dos empregados do Cel. Ozório Gusmão. A viagem era feita em duas etapas. Na primeira pernoitávamos na fazenda do "Seu" Ato (Veriato Ferraz). No dia seguinte rumávamos para Encruzilhada. Depois que  fomos para Salvador, em razão da aposentadoria de Papai, que sofrera um AVC num júri, voltei a Encruzilhada em 1944, após a morte de Papai, ocorrida em 43. E observei que tanto ele como Armando, nosso irmão mais velho, ele médico, e Armando  advogado, eram pessoas queridas na cidade. Era Aroldo  profundamente dedicado e, não sei porque, tinha uma certa predileção pelos partos que fazia em mulheres de baixa renda. Tinha pena do tratamento diferenciado que o hospital fazia. Parece até anedota, mas, me recordo de uma Senhora "metida a besta" que o consultara. Era pernóstica e apresentava ares de que sabia de tudo.E Aroldo, na sua humildade e simplicidade, não suportava a altivez da "caipirona metida". Certa feita Aroldo, ainda agarrado ao Testut, livro de anatomia que o acompanhava, receitou uma injeção para aquela Senhora e lhe disse: É para tomar no "fesse", usando, pernosticamente, o velho francês. E ela: Onde, Doutor? Na região glútea, respondeu ele. Onde mesmo, doutor? Nas nádegas. E como ela ainda não houvesse entendido, ele soltou um sonoro "na bunda".
   De Encruzilhada Aroldo, Lourdes, Raymundinho e Layce (seus primeiros filhos) foram para Montes Claros, a pedido do meu tio Mário. Todo ano, no aniversário de Mamãe, 12 de Janeiro, ele aparecia em casa, levando Lourdes e os meninos. E a família já havia crescido: havia o Haroldinho e o Roberto. Era uma festa. Todos os irmãos (seis) sentados à mesa para o "cozido", prato típico da Bahia, que minha Mãe  preparava como ninguém. Quando me formei em Direito, em 1952, fui a Montes Claros. Ficava o tempo todo com os meninos de tio Mário (Genival e Mário) e os de Aroldo, principalmente os mais velhos (Raymundinho e Layce). Certa feita, Aroldo havia saído para fazer um parto numa fazenda e Raymundinho me obrigou a usar o avental do pai  e com o estetoscópio passei a imitar o mano, examinando Roberto e o proprio Raymundo. Era só brincadeira.
   Já em São Paulo, onde ingressei no Ministério Público, todo ano nós nos reuníamos na casa de Mamãe em Salvador para festejar seu aniversário. Era só festa. Haroldinho era o "dodói" das meninas. E eles iam de carro de Montes Claros a Salvador. O motorista, me lembro até hoje, era o Gabi. Bebia pra burro. Eu, minha esposa e minhas duas filhas, de São Paulo íamos para lá também, enfrentando a Rio-Bahia sem asfalto. Era uma tristeza. Quando chovia, só mesmo a vontade de ver a Mãe e os irmãos justificava o sacrifício. Doce sacrifício.
   Mais tarde, soube que Aroldo fora operado em Montes Claros, mas, em virtude de  uma diabetes que o perseguia, houve problemas e o colega que o operou o encaminhou a Belo Horizonte. Eu e Dita fomos visitá-lo. Estava na UTI de um  hospital, salvo engano, nominado "São Marcos". Quando ele me viu (a UTI era cercada de vidro, como se fosse uma grande redoma), riu e fez um bilhete para Lourdes: "Você viu? Pitango ( meu apelido de infância) esteve aqui". No dia seguinte voltei ao hospital e quando ele me viu pela segunda vez, arqueou os sobrolhos, como quem estivesse pensando;"Se ele está indo para Salvador, por que ficou aqui? Devo estar mal". Dali saí e voltei a Jaú, Estado de São Paulo, onde exercia o cargo de Promotor. Mal cheguei - e isso por volta das 4:30 da manhã, o telefone tilintou e reconhecí a voz de Genival, dizendo: É triste, mas Aroldo se foi e o enterro será hoje, em Montes Claros. Não havia condições de ir. Lembrei-me que um  vizinho ia todos os dias a São Paulo num bimotor de sua propriedade. Quando falei com ele, logo cedo, de imediato pôs à minha disposição a aeronave, pelo tempo que quizesse, conquanto o deixasse em São Paulo. Fui com a minha filha Sylvinha. No velório - como nos velórios de antigamente - um profundo silêncio. Ninguém falava.Como que ninguém acreditasse no que estava vendo. Eu fiquei de pé junto ao caixão por um bom tempo. Na saída fiquei por demais emocionado. Estavam dezenas e dezenas de mulheres de baixa renda, as mesmas que ele adorava atender, carregando flores nas mãos, dando-lhe o último adeus. Era a cidade comocionada. Parecia até que era um feriado. E ele gostava de atender aquelas mulheres. Certa feita me disse Lourdes: Aroldo sofre quando vê um tratamento diferenciado no hospital, as mulheres de posse com um tratamento bem  diverso. Ele, entretanto, como médico e não como dono do hospital, dava-lhes o mesmo carinho que emprestava às demais.
   E ele amava profundamente a profissão. Era um "senhor" obstetra, um "senhor" ginecologista. Sempre me orgulhei dele, como de todos  os demais irmãos e agora, na comemoração do seu centenário, só posso dizer: Você, mano velho, não morreu, está bem vivo nos corações dos que ficaram.

AROLDO TOURINHO - Genival Tourinho

Mário Genival Tourinho

Segundo filho mais velho do Juiz de Direito Fernando da Costa Tourinho, estaria Aroldo hoje (20/02/2012) completando seu centenário, após cerca de quarenta anos de exercício de sua profissão em Montes Claros. Foi um médico extraordinário, não só por sua inquestionável competência, como também pela sua porosidade humana. Extremamente dedicado e bondoso, padecia com as  dores dos seus semelhantes. Na família, temos o orgulho de dizer que foi meu pai o responsável pela sua vinda para Montes Claros, inicialmente para um distrito dessa cidade, já que aqui nos primeiros anos da década de 1940 não tinha casa nem para alugar e nem para vender. De Patis e Bela Bista (Mirabela atualmente) veio para Montes Claros já precedido da fama de excelente médico trazida daqueles antigos distritos e dos seus arredores. Anteriormente, já trouxera papai para Bocaiuva um irmão, formado em Salvador em 1923, de nome Lafayete da Costa Tourinho. Também pelas mãos de meu pai, aqui e em Francisco Sá, Brejo das Almas na época, clinicou Francisco Goes Tourinho, seu primo que viria abandonar a carreira para ser monge franciscano em Salvador, para desconsolo de uma linda jovem bocaiuvense, sua noiva da família Fróes.                            
   Apesar do gênio manso de Aroldo, não me causou surpresa alguma sua filiação pelas minhas mãos ao MDB de Montes Claros, vindo a ser, nas eleições de 1966, o terceiro mais votado dentre todos os canditatos. A filiação de Aroldo ao MDB operou-se contra a vontade de todos os seus amigos, principalmente os médicos. Consideravam eles uma temeridade o ingresso de um homem maduro, já tido como médico de renome em todo o setentrião mineiro numa oposição à ditadura militar.  Desconheciam eles o horror da nossa família para com a baioneta calada, a autoridade na vertical. Junto com o irmão Armando da Costa Tourinho, foi preso por ordem de  Juracy Magalhães em razão de se manifestar a favor da Revolução Costitucionalista de São Paulo, em 1932, prisões só relaxadas após greve geral nas Faculdades de Medicina e Direito. Não sabiam também que nosso avô, Getulino da Costa Tourinho, foi quase à falência por ter apoiado  Ruy Barbosa  na campanha civilista contra  o candidato Hermes da Fonseca. Percebe-se pelo relato que a família Tourinho, com tantos oficiais generais em seu meio, geneticamente nunca foi de apoiar baioneta calada e, menos ainda, a baioneta falada, indutora dos maiores desatinos, só comparáveis aos praticados pela Inquisição contra a humanidade. Até mesmo, talvez, o mais doce e ameno Aroldo Tourinho, figura inesquecível para quem com ele conviveu, era desconhecido como figura capaz de se rebelar contra a última (assim esperamos os que temos bom senso) ditadura em nosso País.

DOUTOR AROLDO TOURINHO - Carmem Dias

Carmem Dias Netto Victória

Tenho uma relação de amor incontestável e inabalável com Montes Claros. Podem achar bairrismo, mas em Montes Claros está minha história. Lá estão minhas referências, pessoas que conheci, amei e respeitei. Gosto de fazer viagens sem mapas pelas regiões da memória afetiva. Gosto das memórias bonitas impressas em cores. Ás vezes me pego com saudade delas, então as resgato.
   Hoje, retirei do meu baú de lembranças o grande médico e exemplar cidadão, Dr. Aroldo Tourinho. Vivemos num país de exígua memória, sendo necessário que as novas gerações conheçam as pessoas que construíram a história da cidade onde vivem, pois é fundamental fazer um elo entre o que passou e o que há de vir.
   Dr. Aroldo Tourinho nasceu em 20 de fevereiro de 1912, em Salvador. Descendente de tradicional família baiana, era filho do Dr. Fernando da Costa Tourinho e D. Luiza Tourinho, ele sobrinho do Dr. Mário Tourinho, que também honrou com o seu trabalho a medicina em Montes Claros.
   Estudou medicina na respeitada e tradicional Universidade Federal da Bahia, onde foi aluno brilhante, formando no ano de 1937. Após a formatura, trabalhou nas cidades de Itambé e Encruzilhada, onde seu pai foi Juiz de Direito. Em 1944, veio para o norte de Minas onde trabalhou nos distritos de Patis e Bela Vista, hoje Mirabela.
   Dotado de excelente formação acadêmica e profissional, além de especialista em ginecologia e obstetrícia, era um grande clínico geral, um verdadeiro médico de família. A que mais se destacava entre tantas qualidades era sua humildade. Homem de personalidade e caráter irrepreensíveis, absolutamente sincero, leal, generoso, modesto, digno, e convicto do que fazia e pensava.
   Clinicou em Patis e Bela Vista, localidades onde conviveu de igual para igual com pessoas simples. Tinha o dom de entender a vida, pois a viveu com os olhos da alma. Nessa época, os distritos de Montes Claros eram totalmente desprovidos de recursos. Não havia as mínimas condições para o exercício da medicina; mesmo assim ele a exerceu com a maior eficiência, porque o fez com humanidade e competência.
   Em 1944 sua família chegou em Montes Claros e alugou a casa de meus pais na Rua Presidente Vargas, esquina com a Rua Afonso Pena. Nossas famílias se conheceram, tornaram-se grandes amigas do coração, amizade fortalecida ao longo da nossa convivência. Desta época tenho muitas lembranças pois minha infância foi junto com a de Layce e Raimundo, seus filhos.
   Desta minha convivência lembro de fatos que até hoje me fazem sorrir, ante a simplicidade daqueles tempos. A história de Dr. Aroldo se confunde com a história da própria Ginecologia e Obstetrícia em Montes Claros, quando os médicos que se dedicavam a essas especialidades se denominavam “médicos de senhoras” . Assim era a placa na janela do seu consultório.
   Eu gostava de ver na sua sala de espera as discretas e pudicas clientes, vestindo severas batas para disfarçar a gravidez, tal a repressão daqueles tempos. Aí, acontecia um fato engraçado: seus clientes do sexo masculino não aceitavam Dr. Aroldo só tratar de mulheres. Chegavam de Patis, Bela Vista, e enquanto Dr. Aroldo não os atendesse não saíam de lá. E ele o fazia, sempre seguro em seus diagnósticos. Tratava os poderosos da mesma forma que os humildes. Não fazia distinção entre ricos e pobres - esses quase nunca o pagavam, ou quando o faziam era em forma de galinhas, leitões, ovos ou frutas.
   Dr. Aroldo trabalhou durante toda a sua vida na Santa Casa de Misericórdia, onde introduziu a operação cesariana, utilizando-a somente quando bem indicada e necessária. Muitas vezes fui com Layce chamá-lo no Cine São Luiz ou Montes Claros, para fazer um parto ou atender a uma emergência. Ele saía sem reclamar, no que era acompanhado por D. Lourdes, sua companheira de todas as horas.
   São muitas as lembranças e saudades que Dr. Aroldo deixou. Médico de várias gerações, trouxe ao mundo milhares de montes-clarenses, entre eles minha filha Ivana, hoje também médica, a quem conto passagens exemplares da vida do Dr. Aroldo.
   Ele faleceu no dia 24 de fevereiro de 1982 em Belo Horizonte. É um exemplo a ser seguido, por médicos ou qualquer um de nós – seja como profissional, como ser humano. Como pai legou a seus filhos um exemplo de vida centrado em honestidade, coerência aos princípios, sinceridade nas amizades, devoção ao trabalho. Como político, um homem todo e por inteiro. Daqui a muitos e muitos anos, além do Hospital Aroldo Tourinho, da rua e do anel rodoviário que receberam o seu nome, sempre haverá alguém que vai dizer: minha mãe, minha avó falavam de um grande médico, um grande homem que tanto trabalhou por Montes Claros no século passado.
   Agradeço a Deus a dádiva de ter privado do seu convívio. Relembro com carinho e admiração a figura inesquecível de Dr. Aroldo Tourinho, legenda e exemplo de esposo, pai, médico e cidadão. Obrigado, Montes Claros, por reverenciá-lo no seu centenário de nascimento. Parafraseando o filósofo: “quem reconhece os beneméritos de sua terra exalta a humanidade”.

DR. AROLDO TOURINHO - Jacy Ribeiro

Maria Jacy Faria Ribeiro


Há 60 anos cheguei em Montes Claros. Recém-casada, novinha, bobinha. Mário morria de pressa para povoar o mundo, porque, penso eu, seu irmão e a maioria dos seus tios não tinham filhos. Achava que os Ribeiros iriam acabar. Passaram-se meses e eu não engravidara. Procuramos, então, o Dr Aroldo Tourinho, seu colega de Santa Casa, médico famoso. Fiquei encantada com sua delicadeza, competência e paciência – com “a fleuma do Aroldinho”, brincava Mário. Foi amizade recíproca à primeira vista.
    Durante anos frequentei o consultório do Dr. Aroldo e sempre, como todas as suas inúmeras clientes, era tratada com ternura de pai. Dr Aroldo fez todos os meus partos - dez! - e não foi apenas parteiro, foi compadre e amigo muito querido toda a vida.  Lembro-me dele segurando a minha mão antes e depois do parto, com o maior carinho, animando-me, confortando-me. Costumava deixar a Santa Casa somente depois de ter certeza de que tudo estava em perfeita ordem. Irmã Malvina sempre comentava com sua fala enrolada: Dr. Aroldo vai ligar, logo após chegar em sua casa, para saber se você e o bebê estão passando bem. Dito e feito. Quinze minutos depois, o telefone tocava. Batata! Era ele.
   Quando a minha caçula nasceu, Mário e meus pais estavam viajando. Comecei a sentir contrações e, para não preocupar os filhos, fui caladinha ao seu consultório. Dr. Aroldo me examinou e perguntou: Quer chamar alguém para acompanhá-la à Santa Casa? A criança já vai nascer! Respondi que não, Doutor, irei sozinha com o senhor. E lá fomos nós. Eu, tensa, pronta para parir. Ele, coitado, preocupadíssimo, dirigindo, barbeirando. Imaginem como foi longo o pequeno percurso até o Hospital. Graças a Deus, tudo correu bem e foi, mais tarde, motivo de muita alegria e piada.
   Dr. Aroldo Tourinho, meu médico, meu compadre, meu amigo, cultivou a bondade, a lhaneza, a paciência, a paz. Foi exemplo de Médico e de Homem. Que saudade!           

Aroldo e Lourdes Tourinho, padrinhos de Márcia Ribeiro.
Da esquerda para a direita: Pe. Joaquim Cesário Macedo, Aroldo, Lourdes, Mário Ribeiro, Paulinho Ribeiro (no colo, olhando pra cá e ocultando a mãe, Jacy) e Marquinho Ribeiro.                              

HISTÓRIAS DE SAUDADES QUE FAZEM UMA HOMENAGEM - Irene Tourinho

Irene Maria Silva Tourinho

"Fique calma que eu vou virar esta criança... Ela sentou!..." Grávida pela primeira vez, ouvi assustada aquela frase... Dr. Aroldo tinha a paciência, a ternura e a experiência que qualquer grávida, de primeira ou de muitas viagens, sonha e busca. Ele me examinava no consultório contíguo à sua casa, lugar que eu, naquela época sua nora, frequentava com liberdade. "Como assim, virar a criança?" perguntava ansiosa. Ele, com aquele humor fino e discreto, ria, e dizia "é rapidinho". E foi!
   Senti suas mãos fazendo uma coreografia na minha barriga, desenhando uma ciranda que provocava ondas que me reviravam por dentro. Não doía. Ele me apalpava e estranhos movimentos aconteciam, até que uma forte sensação de encaixe me apaziguou. Ele voltou a rir: "Tá no lugar... Espero que ela não sente novamente". Pouco tempo depois a criança voltou a sentar e Dr. Aroldo, fazendo graça, novamente a colocou no lugar. Doce, meigo, preciso, ele compartilhava comigo a apreensão. Naquele tempo, saber se era menino ou menina não fazia parte da gravidez. A surpresa preenchia a espera. Finalmente, nasceu Marina, fruto de uma cesárea que ele tentou evitar, sem solução. Ela obedeceu as mãos do médico, ficou na posição que ele moldou, mas resistiu ao parto normal.
   Anos mais tarde, vivendo nos Estados Unidos, contei a história para meu novo ginecologista. Tive uma dimensão ampliada da importância do procedimento que apenas uma vida dedicada à profissão - como foi a de Dr. Aroldo - podia oferecer. E mais: o novo ginecologista custava a acreditar que eu tinha feito uma cesariana. Exclamava, com admiração: "Isso é trabalho de cirurgião plástico... Só muita competência para chegar a um resultado assim!"  Encantada, eu me orgulhava, revia as cenas que antecederam o parto, lembrava do carinho imenso que recebi durante aquele período e me emocionava. Até hoje, escrevo e não consigo - nem sei se quero - evitar esta emoção.
   Ainda se fazem médicos como antigamente??? Possivelmente, sim. Porém, Dr. Aroldo agregava à responsabilidade e ao compromisso profissional um profundo sentido humano que marcava e atravessava seus afazeres de médico, de amigo, de sogro (posso dizer...), de pai. Celebrar seus 100 anos é, para mim, motivo de intensa alegria, de reconhecimento pela sua justa e inabalável conduta. Se ele estiver acompanhando, que receba meu abraço e meu beijo carinhoso e agradecido (e de Marininha também!).
  
Oi, vovô, estou aqui! Te amooooooooooooooooooooooooooo

TIO AROLDO - Fernanda Tourinho

Fernanda Tourinho

Busco em minhas reminiscências infantís conteúdo para escrever sobre meu Tio Aroldo, um dos cinco irmãos de meu pai, Luizernando - Cometa -, segundo filho de D. Lulu e Dr. Fernando da Costa Tourinho, juiz de direito do interior da Bahia. Não conheci meu avô, e conheci meu Tio Aroldo porque ele anualmente vinha a Salvador para visitar sua velha mãe e reencontrar seus irmãos.
    Não havia época mais divertida na minha infância do que as férias de verão! Uma festa ver a família ampliada com a presença de meus tios e primos chegados de Minas e de São Paulo, motivo de muita agitação em nossa casa. Tio Aroldo era um sujeito calado, com um sorriso de canto de boca. Não precisava falar muito, isso ficava por conta de minha Tia Lourdes, sua prima carnal, que falava sem parar com os olhos fechados e que era deliciosamente moderna e engraçada.
   Eu era fascinada pela consaguineidade daquela relação amorosa! Como assim, ser primo e prima de seus próprios filhos? E ria com a "autoridade" redobrada de Tia Lourdes com seus sobrinhos... Não era uma tia de "consideração", tia que casou com tio. Era tia-prima e por isso podia dizer o que quisesse a cada um de nós. E o velho Aroldo mexia os ombros num cacoete inconfundível e ria lábios fechados e cara safada.
   Não conheci o doutor Aroldo. Convivi verão a verão com um médico em férias, curtidor de praia, água de côco, picolé de frutas e livrinho de cowboy! Ah, meu pai, meus tios e os livrinhos de cowboy... esse é o recorte desta inocente crônica!
   Cheguei à adolescência me divertindo em ver aqueles irmãos reunidos, na praia ou em qualquer outro lugar à sombra, relaxadamente deitados a devorar pequenos livrinhos, cujas capas, sempre ilustradas com uma linda moça de longos cabelos, vestidos espartilhados, decotes avantajados, encostadas em galãs hollywoodianos com um rifle nas mãos, traziam títulos bizarros como "Forasteiros em fúria", "Cowboys do inferno", "Sem medo de matar", Rota de valentes", "Vingança no Oeste". Era no mínimo intrigante ver aqueles pais de família tão responsáveis, trabalhadores incansáveis, completamente absortos com aquela leitura chula, comprada às dúzias em bancas de jornais. Liam aos montes e trocavam as pilhas entre si. Embora as capas se assemelhassem, sabiam à mais rápida passada de vistas se já tinham lido o exemplar. Às vezes paravam a leitura para um refrescante banho de mar, marcavam a página e perguntavam um ao outro: "No seu já morreram quantos?"
   Foi assim que um dia, voltando de uma caminhada na praia com os primos, encontramos meu pai e meus tios Aroldo, Herdival e Pitango (Fernando) deitados com seus livrinhos, tendo ao lado de cada um fileira de palitinhos de picolé, que iam enfiando na areia a cada morte lida. Uma competição para ver qual a melhor história! Uns "porretas!", dizíamos, parodiando a eles mesmos, que assim definiam os que não estavam nem aí pra nada e viviam filosoficamente sem estresses.
   Mas a concentração de Tio Aroldo, apelidado por seu filho Henriquinho de Ted Billson, era inigualável! Que testemunhem os nativos da Ilha de Itaparica, onde fomos passear em uma bucólica tarde de janeiro, andando  por centenárias ruazinhas calçadas com paralelepípedos, bordeadas por inúmeras casinhas de veraneio, porta-janela de frente e longos e estreitos quintais com mangueiras carregadas, que davam para a tranquila beira-mar da baía de Todos os Santos. De repente a falta anunciada: "Cadê Aroldo?" pergunta Tia Lourdes numa pausa de divertida prosa em movimento. E entre "vixes" e "uais" repartimo-nos em grupos para a aventura de procurá-lo pela histórica cidadezinha.
   "O homem com o livrinho?" perguntavam-nos os nativos e veranistas que encontrávamos sentados às portas em baianíssima resenha da tarde, "foi por ali", indicavam com a cabeça. Seguindo as pistas chegamos quase juntos ao coreto da praça principal, onde, sentado no banquinho à sombra de uma frondosa árvore, alheio a tudo e a todos, Tio Aroldo finalizava as últimas páginas da sangrenta leitura. Tia Lourdes passou-lhe um sermão, mas para mim o cacoete do ombro e o sorrisinho de canto de boca veio acompanhado por uma piscadela safada!
   O carnaval de 1982 foi de apreensão por sua saúde. Como assim, meu tio no hospital? Com aquela saúde de ferro? Não, não haveria de ser nada grave! Brinquemos o carnaval, daria tudo certo! Qual! As cinzas nos surpreenderam ainda mais tristes com a partida do admirável Tio Aroldo. Um porreta que não gostava de atrapalhar a diversão de ninguém! 
   Saudade eterna!

MODEBRA NÃO CHORA - João Avelino Neto

João Avelino Neto
Com exceção de Patrícia, dr. Aroldo fez o parto dos meus outros três filhos: Alexandre, Guilherme e Eduardo. Guilherme não teria chorado quando nasceu. Perguntei a dr. Aroldo porque não houvera choro. Respondeu-me sorrindo: MoDeBra não chora...  
   Neste ano do Centenário do nascimento deste cidadão ímpar na sua trajetória terrena, é imperioso registrar e comemorar o fato histórico. Aportou-se aqui vindo da Bahia de Todos os Santos. A medicina foi o seu Sacerdócio. Todavia, como animal político, teve participação efetiva no campo político-partidário de nossa cidade. Isso ocorreu exatamente no momento mais importante e crucial da história política brasileira, maculada pelo Golpe Udeno/Militar de 1964, participando da criação e da vida do MDB. 
   O Golpe Udeno/Militar de 64 protagonizou atos e fatos “sui generis”. Amordaçou os sindicatos, movimentos estudantis e populares e extinguiu os partidos políticos. Contudo, para vender uma falsa imagem democrática no exterior, a Ditadura criou dois partidos, um da situação, a Arena, e outro da oposição, o MDB. Mas o fato estratégico dessa armação partidária fora as sublegendas criadas para abrigar as correntes governistas divergentes nos estados e municípios sob o guarda-chuva da Arena, que se desdobrava em três partidos numa mesma legenda. Diante disso, nestes Montes Claros, tudo caminhava para um partido único, como ocorreu em todo o Norte de Minas, já que a Arena tinha espaço para todos os caciques dos partidos extintos, ou seja, PSD, UDN, PR, PTB e outros menos votados. E isso realmente aconteceu. 
   Dr. Aroldo, porém, ouviu o brado do seu sobrinho Genival, vindo das Alterosas, e juntou-se ao grupo de estudantes e democratas, criando o MDB de Montes Claros, sem as elites políticas e econômicas, que se acomodaram dentro das sublegendas da Arena, mantendo e sustentando vinte anos de Ditadura e de obscurantismo na vida da Nação. Dr. Aroldo Tourinho participou ativamente da história do MDB, como Vereador, candidato a vice e a Prefeito, mas, antes de tudo, foi um revolucionário, em busca do restabelecimento dos Direitos Democráticos e da emancipação política e social do povo brasileiro, que hoje já é uma realidade palpável, graças a cidadãos do naipe do Centenário Aroldo Tourinho e do advento de um trabalhador à chefia da Nação.

VOVÔ AROLDO, QUE SAUDADE!!!!! - Andréa Machado de Andrade

Andréa Machado de Andrade

Falar do vovô é voltar à minha infância e adolescência e lembrar de muitos bons momentos em família. Sou Andréa, segunda neta de Aroldo e Lourdes, e filha de Layce e Machado.
   Lembro-me bem do vovô, contando que  mamãe queria muito ter a honra de lhe dar a primeira neta, porém, coitada, engravidou pouco depois da minha tia Terezinha (esposa de Raymundo), fato que a deixou inconformada, mas sem perder as esperanças de que a sorte poderia estar do seu lado. Quando tia Terezinha sentiu as primeiras contrações, minha mãe correu para a Santa Casa, de mala e cuia, procurando o vovô e dizendo que havia chegado a hora. Ele, com aquele jeito calmo e seu sorriso maroto, fez um carinho na barriga da minha mãe e disse que ela poderia voltar depois de um mês. E assim foi, e, exatamente 32 dias após o ocorrido eu nasci.
   Depois de mim foram mais quatro partos e nasceram Igor, Rogério, Adriana e Juliana. Todos os partos feitos pelo meu avô, o que sempre achei o máximo. Na escola, ficava toda orgulhosa quando meus amigos contavam que o vovô havia feito o parto da mãe deles. Ah, muitas vezes surgiam aquelas histórias de o bebê estar sentado e o vovô, habilidosamente, conseguir colocá-lo na posição ideal para nascer. Eu achava aquilo sensacional, parecia uma mágica! Me recordo, como se fosse ontem, do vovô indo para a Santa Casa no seu Dodge Dart enorme, que parecia ainda maior quando dirigido por ele, tão pequeno - dava a sensação de que ele não enxergava nada à sua frente, pois sumia dentro do carro.
   Ia à casa do vovô com frequência (ao lado do Automóvel Clube) e era uma casa bem movimentada, com minha avó, Lourdes, falando alto, contando casos, e meus tios ouvindo Beatles, Pink Floyd, Jethro Tull, Rolling Stones... Parece que foi ontem! O consultório dele era ao lado da casa, tipo um anexo, e eu adorava lá entrar e vê-lo todo de branco, esperando a próxima paciente. Ele atendia da mesma forma as pacientes que tinham condições financeiras e aquelas que não podiam pagar pela consulta. Às vezes, recebia como pagamento doces, cachaça, frutas, mas não se importava, dava um sorriso, agradecia-lhes, e estava tudo bem. Ele também salvou muitas parteiras, pois, na época, em que alguns partos ainda eram feitos em casa, às vezes esses se complicavam e elas apelavam para o vovô, sempre disposto a ajudá-las.
   Ainda me perseguem na memória as imagens de nossas viagens de férias a Salvador. Que delícia, a família toda reunida, o encontro com os tios, primos, e com minha bisavó Lulu, que víamos uma vez por ano, o apartamento da Pituba, a casa de praia do meu tio Luizernando, as farras, as brincadeiras, os jogos de War até de madrugada, os livrinhos de cowboy do vovô Aroldo, oh! Fui algumas vezes com ele de carro para Salvador e a viagem, apesar de longa, era divertida, com a vovó Lourdes falando sem parar. Às vezes chegávamos em Salvador tarde da noite, mas, antes de irmos para casa, parávamos na orla, descíamos do carro e ficávamos ali, respirando fundo para sentir o cheiro do mar. Só depois disso é que o vovô dizia: chegamos!
    É impossível falar do vovô sem lembrar do meu pai. Os dois eram mais do que sogro e genro, eram amigos, confidentes e pareciam pai e filho. Só divergiam na política, um era MDB (vovô) e o outro ARENA, mas cada um respeitava muito a opinião do outro e este assunto nunca interferiu na amizade. É impossível falar do vovô sem lembrar do meu pai. Os dois eram mais do que sogro e genro, eram amigos, confidentes e pareciam pai e filho. Só divergiam na política, um era MDB (vovô) e o outro ARENA, mas cada um respeitava muito a opinião do outro e este assunto nunca interferiu na amizade.
   Vovô era dedicado à medicina, comprometido com suas pacientes , afetivo e carinhoso com a família. Era humilde, sincero, generoso e, com seu jeitinho especial, estava sempre pronto para ajudar quem quer que seja. Que saudades, meu avô! Quando ele saía de casa para ir para o hospital sempre dizia: vou operar. Porém, um dia, disse a mesma coisa, mas na verdade ele é quem seria operado e depois disso nunca mais voltou. Na noite em que faleceu ele estava em BH e minha mãe o acompanhava. O telefone de casa tocou várias vezes e eu fiquei ali, sem coragem de atender, com medo da notícia que poderia vir do outro lado, principalmente porque era carnaval. Estava louca para acabar o carnaval daquele ano, pois o vovô sempre dizia que tinha nascido no carnaval e morreria no carnaval. Não deu outra e, para nossa tristeza, ele estava certo...
  
   Vovô Aroldo, que saudade!

CENTENÁRIO DE DR. AROLDO TOURINHO - João Carlos Sobreira

João Carlos Sobreira

Sou amigo da Família Tourinho desde menino. Quando Dr. Mário Tourinho chegou em Montes Claros, na década de 1940, com esposa e filhos, ficou hospedado no Hotel São Luiz até encontrar uma casa boa, confortável e bem localizada para morar e montar seu consultório médico. Seus filhos Genival, da mesma idade de meu irmão Newton, e Mário Filho, identicamente da mesma idade minha, se tornaram, naturalmente, nossos amigos. Essa aproximação deu início a uma amizade sincera a ponto de nos considerarmos irmãos. Fatos posteriores mostram como foi consolidada  essa irmandade. Alguns anos mais tarde chega à nossa cidade Dr. Aroldo com D. Lourdes e filhos, ampliando o clã dos Tourinho no sertão mineiro.
  Quando fui estudar em Belo Horizonte, em 1954, fiquei hospedado na pensão de Tia Quininha (muitos em Montes Claros a chamavam de D. Vêla).  Como companheiros de quarto, convivi por vários anos com Genival e Raymundo Tourinho. Este ainda adolescente e ainda imberbe. Genival já era universitário e irrequieto estudante de Direito, bem falante, com toda eloquente verve conhecida até os tempos atuais. Ele era estudioso, culto e muito entusiasmado com a política. Tinha o hábito de ficar estudando até altas horas da noite, fato que nos obrigou a aprender a dormir com a luz acesa. 
  Formado em 1964, estabeleci-me com a CONAL, em 2 salas no segundo andar da casa de minha mãe, tendo como vizinho na contra-esquina a CONTRUMOC. Era uma grande loja de materiais de construção, pertencente a Pedro Narciso, Raymundo Tourinho e José Corrêa Machado. Costumávamos reunir na loja, não todos os dias, mas sempre à tardinha, para um bate-papo: além de Pedro e Raymundo, nós da
CONAL (Mércio, Eldan e eu), Machadinho, às vezes Dr. Aroldo  e Genival – quando estava na cidade.
  No final de 1965, numa dessas reuniões, Genival lançou a idéia de fundar em Montes Claros o MDB, mobilizando apenas iniciantes em política, já que os políticos antigos, tarimbados e calejados, haviam preferido ficar “sob as asas quentes do governo”, filiando-se à ARENA, que  se tornara partido oficial dos milicos. Dentre os dez primeiros que criaram o MDB-MOC, encontrava-se Dr. Aroldo Tourinho. A partir da fundação confirmada, as reuniões de bate-papo passaram a ser recheadas com os novos companheiros do MDB. Afonso Prates, Zé da Conceição, Zé Maria “Peito de Aço”, por exemplo, passaram a ser presenças constantes e agora a política era também assunto do bate-papo. Logo nas primeiras reuniões regulares do MDB, resolvemos lançar candidatos apenas ao cargo de vereador, já que o candidato a prefeito do outro partido era Toninho Rebello, homem inteligente, trabalhador, de reputação ilibada, que deveria ter o apoio de toda cidade, na qualidade de candidato único, o que realmente aconteceu.
  O MDB teve um desempenho brilhante nessa eleição: apesar de ter direito a 25, conseguiu registrar apenas 8 candidatos. Mas o partido elegeu 4 vereadores, ou seja, 50% dos pretendentes! Performance digna de constar no Guiness, o livro dos recordes. Tudo isso graças, principalmente, ao desempenho de Dr. Aroldo, com um surpreendente número de votos, o terceiro maior até então obtido por um vereador desde a primeira eleição na cidade, para edis. Esse motivo elevou, em muito, o quociente eleitoral do MDB, possibilitando a entrada de mais eleitos do que os esperados pelos dirigentes do partido oposto. Conforme esperávamos, Dr. Aroldo brilhou intensamente no desempenho da vereança. 
  Na eleição seguinte, em 1970, o partido resolveu que teríamos a chapa completa, procurando conseguir um nome para prefeito e preencher todas as vagas de candidatos a vereador. Teríamos que trabalhar exaustivamente  no sentido de arregimentar novos membros para o objetivo pretendido sem, entretanto, perder a qualidade e o compromisso ético dos primeiros “desbravadores” inscritos, até o prazo antes da convenção para a escolha dos candidatos. A data foi definida para o dia 19 de setembro.
 ` Não pude comparecer à convenção porque estava dando assistência à Baby na Santa Casa, pela chegada de Isabela, nossa primeira filha. Ao entardecer recebemos a visita dos amigos Genival, Pedro Narciso, Afonso Prates, Dr. Aroldo e Raymundo Tourinho, trazendo um bouquet de rosas para, segundo as palavras de Genival, as mulheres da família, em nome do MDB. Vieram também informar o resultado da convenção: fui escolhido como candidato a prefeito, tendo como vice Dr. Aroldo. 
  A campanha foi tensa e difícil, ao mesmo tempo divertida. Explico: primeiro, porque o governo militar e a ARENA, sua aliada, estavam sempre dispostos a nos perseguir, fazendo nossos comícios terem mais investigadores e policiais do que platéia. A maioria dos nossos simpatizantes ficava amedrontada com o aparato armado de máquinas fotográficas, gravadores e armas de fogo acintosamente à mostra. Divertida porque nas constates reuniões que promovíamos antes dos comícios, Dr. Aroldo sempre quebrava o gelo do ambiente (de certa forma, o pessoal um pouco amedrontado com as veladas ameaças), com tiradas bem humoradas e gozações aos companheiros, que sempre nos faziam rir. Ele mostrava seu lado humano que poucos conheciam.
  Na época do nascimento de Rafael, Dra. Maria de Jesus, que acompanhara o pré-natal estava viajando. Era domingo e eu levei Baby à Santa Casa para Irmã Malvina verificar um incômodo que ela estava sentindo. Depois do exame a freira veio apressada me comunicar: - “O senhorr pode buscarr o maleta, eu vou telefonarr parra doctorr Arroldo, o criança estar nascendo.” Quando cheguei com a maleta e minha sogra, subimos a rampa logo atrás de Dr. Aroldo. O painel luminoso já anunciava: MENINO.
   Antes de voltar para casa, Dr. Aroldo passou pelo apartamento onde Baby estava e foi logo dizendo: “ Cheguei só para fazer os finalmentes do parto. Ô Joãozinho, tenha cuidado com o próximo parto de sua mulher. A criança pode nascer na rua. Ela é muito boa parideira!”
  Dr. Aroldo sempre foi “boa praça”, amigo e companheiro, sempre alegre e muito cortês, por isso mesmo é meu personagem inesquecível.