segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

MEU TIO AROLDO - Fernanda Tourinho

Fernanda Tourinho

Busco em minhas reminiscências infantís conteúdo para escrever sobre meu Tio Aroldo, um dos cinco irmãos de meu pai, Luizernando - Cometa -, segundo filho de D. Lulu e Dr. Fernando da Costa Tourinho, juiz de direito do interior da Bahia. Não conheci meu avô, e conheci meu Tio Aroldo porque ele anualmente vinha a Salvador para visitar sua velha mãe e reencontrar seus irmãos.
   Não havia época mais divertida na minha infância do que as férias de verão! Uma festa ver a família ampliada com a presença de meus tios e primos chegados de Minas e de São Paulo, motivo de muita agitação em nossa casa. Tio Aroldo era um sujeito calado, com um sorriso de canto de boca. Não precisava falar muito, isso ficava por conta de minha Tia Lourdes, sua prima carnal, que falava sem parar com os olhos fechados e que era deliciosamente moderna e engraçada.
   Eu era fascinada pela consaguineidade daquela relação amorosa! Como assim, ser primo e prima de seus próprios filhos? E ria com a "autoridade" redobrada de Tia Lourdes com seus sobrinhos... Não era uma tia de "consideração", tia que casou com tio. Era tia-prima e por isso podia dizer o que quisesse a cada um de nós. E o velho Aroldo mexia os ombros num cacoete inconfundível e ria lábios fechados e cara safada.
   Não conheci o doutor Aroldo. Convivi verão a verão com um médico em férias, curtidor de praia, água de côco, picolé de frutas e livrinho de cowboy! Ah, meu pai, meus tios e os livrinhos de cowboy... esse é o recorte desta inocente crônica!
Cheguei à adolescência me divertindo em ver aqueles irmãos reunidos, na praia ou em qualquer outro lugar à sombra, relaxadamente deitados a devorar pequenos livrinhos, cujas capas, sempre ilustradas com uma linda moça de longos cabelos, vestidos espartilhados, decotes avantajados, encostadas em galãs hollywoodianos com um rifle nas mãos, traziam títulos bizarros como "Forasteiros em Fúria", "Cowboys do Inferno", "Sem medo de matar", Rota de Valentes", "Vingança no Oeste". Era no mínimo intrigante ver aqueles pais de família tão responsáveis, trabalhadores incansáveis, completamente absortos com aquela leitura chula, comprada às dúzias em bancas de jornais. Liam aos montes e trocavam as pilhas entre si. Embora as capas se assemelhassem, sabiam à mais rápida passada de vistas se já tinham lido o exemplar. As vezes paravam a leitura para um refrescante banho de mar, marcavam a página e perguntavam um ao outro: "No seu já morreram quantos?"
   Foi assim que um dia, voltando de uma caminhada na praia com os primos, encontramos meu pai e meus tios Aroldo, Herdival e Pitango (Fernando) deitados com seus livrinhos, tendo ao lado de cada um fileira de palitinhos de picolé, que iam enfiando na areia a cada morte lida. Uma competição para ver qual a melhor história! Uns "porretas!", dizíamos, parodiando a eles mesmos, que assim definiam os que não estavam nem aí pra nada e viviam filosoficamente sem estresses.
   Mas a concentração de Tio Aroldo, apelidado por seu filho Henriquinho de Ted Billson, era inigualável! Que testemunhem os nativos da Ilha de Itaparica, onde fomos passear em uma bucólica tarde de janeiro, andando  por centenárias ruazinhas calçadas com paralelepípedos, bordeadas por inúmeras casinhas de veraneio, porta-janela de frente e longos e estreitos quintais com mangueiras carregadas, que davam para a tranquila beira-mar da baía de Todos os Santos. De repente a falta anunciada: "Cadê Aroldo?" pergunta Tia Lourdes numa pausa de divertida prosa em movimento. E entre "vixes" e "uais" repartimo-nos em grupos para a aventura de procurá-lo pela histórica cidadezinha. "O homem com o livrinho?" perguntavam-nos os nativos e veranistas que encontrávamos sentados às portas em baianíssima resenha da tarde, "foi por ali", indicavam com a cabeça. Seguindo as pistas chegamos quase juntos ao coreto da praça principal, onde, sentado no banquinho à sombra de uma frondosa árvore, alheio a tudo e a todos, Tio Aroldo finalizava as últimas páginas da sangrenta leitura. Tia Lourdes passou-lhe um sermão, mas para mim o cacoete do ombro e o sorrisinho de canto de boca veio acompanhado por uma piscadela safada!
   O carnaval de 1982 foi de apreensão por sua saúde. Como assim, meu tio no hospital? Com aquela saúde de ferro? Não, não haveria de ser nada grave! Brinquemos o carnaval, daria tudo certo! Qual! As cinzas nos surpreenderam ainda mais tristes com a partida do admirável Tio Aroldo. Um porreta que não gostava de atrapalhar a diversão de ninguém! 
   Saudade eterna!

AROLDO CENTENÁRIO DA COSTA TOURINHO - Augusto Vieira

Augusto Vieira                                      


Até o término de meu curso científico, no final do ano de 1962, com quase 18 anos, eu o conhecia apenas de nome. Era considerado por meu pai como um dos grandes médicos da cidade. Convivi muito mais, nesse período, com minha querida e saudosa “tia” Lourdes do que com ele, porque ela era muito amiga de minha mãe e de minha mestra D. Marina. E passei a admirar seu gênio sempre alegre, sua capacidade de resolver problemas com simplicidade e rapidez e seu espírito bastante evoluído, muito à frente das mulheres da época.
    Aí fui estudar em Belo Horizonte, onde permaneci até o mês de dezembro de 1969, presente em nossas vidas o AI-5, um dos mais violentos instrumentos da opressão dos chamados “anos de chumbo”. Retornei à minha aldeia para iniciar a vida profissional, depois de lutar contra a ditadura durante toda minha passagem pela UFMG e sofrer na própria pele as consequências de meus atos. Enveredei-me pelos caminhos do magistério e da advocacia, mas meus sonhos não envelheciam. A luta continuava. E me liguei ao pessoal do MDB, do qual ele era um dos mais conceituados militantes. Participei de várias reuniões do partido, muitas delas na residência de meu querido “tio” Zeca Guimarães, e lá estava ele, sempre altivo, com aqueles inteligentíssimos e pequeninos olhos negros, medicinalmente trajado, sempre à disposição para as lutas pela redemocratização do país. E foi assim que nasceu uma grande amizade que, com o passar do inexorável tempo, só fez se aprofundar e tornar-se cada vez mais sincera, perdurando até seu encantamento. Sentíamos imenso prazer em nos encontrarmos em qualquer local, desde uma solenidade a uma festinha em casa de amigos. Como eu já tratava sua esposa por “tia” Lourdes, passei a tratá-lo por “tio” Aroldo.
   Quando sua filha, Layce, dirigiu a Faculdade de Filosofia eu lecionava Política, no curso de Ciências Sociais. E em homenagem a ela fiz o roteiro e dirigi o I Show Fafil, apresentado uma única vez, no Clube Montes Claros, com o salão do quarto andar lotado. Sucesso estrondoso, com reiterados pedidos de reapresentações que, esnobemente, negávamos, argumentando que jamais conseguiríamos alcançar novamente aquele sucesso, que marcou profundamente a arte universitária de minha aldeia. Adorávamos deixar as pessoas na saudade daquele show, cujos artistas foram os próprios alunos da faculdade. Não fosse minha diretora filha de meu grande amigo, acho que eu não teria me empenhado tanto naquela empreitada. Layce me agradeceu de uma maneira tão carinhosa que jamais esquecerei seu gesto e suas palavras, ditas no palco, no encerramento da jornada.
   Claro que eu gostava muito de Raymundo, de Haroldo Filho e de Henrique, mas dos filhos de “tio” Aroldo, meu grande amigo foi Roberto, Didu, que se tornou personagem de meu livro Estórias do Bala, num dos “causos” mais engraçados que já escrevi, que é a história dele com um dono de bar chamado “Pedro Babão”. Didu frequentava minha casa e uma vez me deu para ler um livro, prontinho, com seus poemas, para que eu fizesse a crítica. Foi uma das coisas mais lindas que já li em toda minha vida.
   Pois é, meu querido “tio” Aroldo, nesse seu centenário, em que toda a cidade reverencia sua memória, quero que você receba mais um afetuoso abraço de seu eterno amigo Augustão Bala Doce. Abraço sincero, como sinceros foram tantos outros que já trocamos, desta vez, com meu coração cheio de saudade de você, que merece de todos nós as mais efusivas homenagens, pelo tanto que você fez por nós e por nossa cidade em toda sua honrada e alegre travessia. Daqui de sua Bahia, saravá, baiano porreta, montes-clarense da gema! E que o dia 20 de fevereiro de 2012 fique eternamente marcado como o “Dia do Centenário de Aroldo da Costa Tourinho”.

MINHA PRIMEIRA IDA A MONTES CLAROS - Deraldo Tourinho

Deraldo Coelho da Costa Tourinho


Minha primeira visita a Montes Claros, a convite de meus tios, aconteceu há décadas, quando eu tinha 16 anos. Fiquei uma quinzena na cidade, divertindo-me com Cabaret (Haroldo Filho), Didu (Roberto) e Henrique. Visitava também Raymundo, Terezinha, Layce e Machado. Foram dias de muita felicidade e aprendizagem. Um soteropolitano no norte de Minas, tendo o privilégio de se hospedar na casa do Doutor que tinha “aparado” dois terços da população local.
   A estadia foi repleta de bons momentos juntos aos tios Aroldo e Lourdes e aos primos. Lembro-me de um acontecimento especial. Certo dia da semana, no turno matutino, o tio Aroldo atendia socialmente em seu gabinete, no térreo da casa, com acesso à rua lateral. Curioso, saí à rua e observei a fila de pacientes que se formava esperando a consulta. Não sei quem, Didu ou Cabaret, acompanhava-me nessa observação ao que ocorria e observei na fila jovens moças, com roupas provocantes, aguardando atendimento. O primo matou a minha curiosidade indicando:
   - São as meninas de Edna e Leobina (meninas do lupamar) que o velho atende.
   Após o almoço, dirigi-me ao tio, encantado com a sua generosidade e juramento médico. Quando lhe perguntei sobre as “meninas”, impressionado com a sua bondade, ouvi uma resposta para me tirar do tempo:
   - Só estou protegendo vocês de uma blenorragia!
   Quase uma década depois, estando em Montes Claros para acompanhar o funeral do meu querido tio, uma cena ficou registrada na minha memória para sempre. Impedidas pelos religiosos da função de se posicionarem no cortejo que se formou à frente do cruzeiro do cemitério, iam de véu e terço, em número considerável, as meninas de Edna e Leobina, homenageando o generoso e competente médico que as protegia, assim como a todos nós.
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DOUTOR AROLDO - Vladimir M Patrício

Vladimir Mendes Patrício


A minha maior alegria na infância era passear em Montes Claros. A cidade era a terra dos Vemaguetes, aqueles carrinhos estranhos de sons pipocantes que eu adorava ouvir. Ficava na casa do Tio Raimundo onde, com certeza, bebia da fonte do refino cultural e conheci, dentre outras coisas boas da vida, a música dos Beatles, melodia diferente de tudo o que se ouvia em Rio Pardo de Minas na época.  
   Lembro do Doutor Aroldo chegando pra visitar o tio, com seu Dodge Dart marrom. Era o carro de poucos, e corríamos, eu, a Ivana e o Claudinho, a quem carinhosamente chamavam de Curumin, para abrir o portão.  Eu observava a figura pequena do doutor, cabelos lisos, ralos, penteados para trás, olhos negros pequenos, conversa calma, voz de um quase sussurro, a relatar no sofá da sala os casos de Cândido, um filho seu de criação, negro, que era diabético e que comia doces às escondidas, e um caso em que este mesmo quase revirara a casa toda por causa, imagine, de uma barata.  
   Doutor Aroldo pode ser definido como sinônimo de trabalho, de honestidade, de honradez, de ética, de família, enfim, mas tenho para mim no cantinho do coração a lembrança do homem simples que fez o parto de minha mãe há 49 anos atrás, com todo carinho e dedicação, quando vim ao mundo. Ele é o maior presente que a Bahia poderia ter dado a Montes Claros e ao norte de Minas.